O momento que precede a Procissão do
Senhor Morto é dos mais piedosos. Os irmãos do Convento do Carmo abrem as suas
portas aos fiéis contritos que adoram e beijam a bela imagem do Crucificado
que, numa concessão rara, desce do altar-mor de onde contempla os homens que
passam.
Enquanto isso, o corpo do Senhor Morto
é velado em câmara ardente na igreja vizinha dos veneráveis irmãos terceiros
carmelitas, responsáveis, há séculos, pela procissão. Em seu esquife de madeira
e prata, Jesus mais uma vez morto repousa entre lágrimas e lamentos de beatos e
passantes de nervos mais fracos. Toda a capela-mor é sobriedade, sendo o altar
coberto pelo roxo que traduz o luto da Igreja pela morte daquele que,
ressuscitado, será fundador e fundamento de religião milenar. Envolto em véu
diáfano, o Filho do homem é pranteado e logo sairá na Procissão de Enterro,
como foi chamada no passado, seguido pelo mesmo séquito de há dois mil anos,
hoje representado aqui por membros das duas ordens carmelitas. A imagem exposta
é de beleza ímpar e foi esculpida em 1758 - capo
lavoro de Francisco das Chagas, o Cabra, filho de escravos de quem herdou o
fado e a carta de alforria.
Sob salva de tiros executados pelo
Batalhão de Choque da Polícia Militar, sai o cortejo às 16 horas. Como na idade
Média, os sinos há dias foram silenciados, e é ao som da matraca que o povo
acode organizando-se com precisão quase coreográfica. E seguem Ladeira do Carmo
abaixo, em trajeto modificado pela reforma da Igreja do Passo. A matraca anuncia
aos locais a passagem do santo cortejo e um sincronizado debruçar-se em janelas
confere mais vida a procissão. Depois são circunstantes que se ajuntam ao longo
do caminho e, no Largo do Pelourinho, a multidão já se avoluma. Dos bares
abertos, copos de cerveja se elevam em saudação. Estamos na Bahia e nada há que
se estranhar que bêbedos, vadios e prostitutas compareçam de forma menos
solene. Estes, alguns já tão crucificados em suas vidas diárias, são Cirineus
que se juntam aos "cristãos oficiais" e, em seus corações, levam suas
cruzes, silenciosos.
Seguindo em direção ao Terreiro de
Jesus, pessoas de todas as idades sobem e descem ladeiras com esforço
gratificado pela honra de acompanhar seu Senhor em cada um dos passos de Sua
Paixão. Amiúde, para-se para ouvir a Palavra. Novas salvas de tiros e todos
seguem ao som de músicas piedosas. Ali, junta-se ao cortejo o Arcebispo Murilo
Krieger com seu séquito diocesano. Toma a frente da procissão e pronuncia
palavras autorizadas.
A chegada ao Paço Municipal marca o fim
da primeira parte do cortejo. A noite já chegou, prateada pela lua cheia. A
multidão começa a se dissipar mesmo durante a fala do arcebispo. A sorveteria A
Cubana enche-se em minutos. Estão todos cansados e sedentos. Jejuns quebrados,
comem e bebem com prazer já não interdito pela Igreja.
Muito me admiram as procissões. E
encantam! Sendo alguém que, como diz Câmara Cascudo, é mais da fé que do rito,
sou seduzida por movimentações populares, com especial predileção pelas de
motivação religiosa. Nesta, cantei muito, acompanhei-a do começo ao fim,
admirei a beleza plástica do evento, as forças dos rostos, a vibração da fé, o
amor que une o povo de Deus, a vaidade que o separa. No entanto, posso dizer
como o Pe. Antonio Vieira em seu fabuloso sermão do Terceiro Domingo da
Quaresma (1655): "Nem louvo nem lamento - admiro com as turbas."
Helenita Monte de Hollanda